As Amazonas das Montanhas – Uma missão diferente
Após seguirem pelo mato, as guerreiras Diouxie e
Kíria, esta muito machucada, chegaram, enfim, à aldeia da rainha Zininsk.
Mulher de vários invernos, Zininsk era quem comandava a principal aldeia da
floresta e era conhecida por ostentar luxo e poder, fatores que já a colocaram
em inúmeras situações de risco.
_Eu sabia que seriam bem sucedidas! Estou diante das
duas melhores guerreiras de toda a Nação Amazonas! – Zininsk exclamou,
satisfeita em ter em sua aldeia a bela Kíria e, principalmente, a princesa
Diouxie, por quem nutria indisfarçável adoração. Mas seu sorriso logo
desapareceu ao ver que ambas estavam exaustas e feridas. Chamou suas duas
guerreiras de confiança e ordenou: - Providenciem a elas um bom banho de
imersão e peça para a curandeira verificar esses ferimentos. Depois acomodem-nas
nos aposentos principais. Não deixem que lhes faltem água, comida e... E vinho!
As amazonas das montanhas gostam de vinho! Depois deixem-nas. Elas precisam
descansar...
*
Enquanto Kíria se despia com alguma dificuldade,
Diouxie, de costas para ela, ouvia a curandeira e segurava alguns frascos que
esta lhe passava. Que lição a Deusa estaria lhe dando, fazendo-a cuidar da
bela?
Aproveitando que Diouxie estava atenta às
explicações da curandeira, Kíria, driblando a dor física que sentia a cada
movimento, entrou na tina e sentiu a água fresca envolver seu corpo. Sentiu um
arrepio doloroso, porém passageiro. Sua pele ardeu em contato com a água, mas a
sensação rapidamente se transformou em prazer, fazendo-a fechar os olhos. Tudo
acontecera muito rápido...
* *
*
Estiveram andando um dia inteiro naquela região seca
e pedregosa, desde que deixaram os cavalos nos pastos, em um altiplano que
ficara para trás. O sol forte e o céu muito azul sobre suas cabeças não
atrapalhavam em nada os caminhos que as duas guerreiras faziam até a floresta.
Ao se deparar com o manto verde que indicava o
início da selva, a princesa Diouxie parou e respirou fundo. Sentiu a presença
da Deusa no vento que agitava seus cabelos vermelhos. Sem dúvida, era uma das
filhas preferidas Dela. Era destemida e linda, e tinha ciência disso, o que lhe
conferia certa arrogância, além da soberania. Esperou Kíria parar também e
olhou-a por um tempo. Kíria era a ‘bela’, também uma das filhas preferidas da
Deusa. Os olhos cinzas se destacando no rosto bonito, que cabelos negros
revoltos emolduravam, conferiam a ela algo de divindade. Tanta perfeição incomodava
Diouxie. Mas de repente lembrou-se porque estavam ali e, tirando os olhos de
Kíria, deu uma boa visualizada panorâmica na região perigosa que as esperava:
_Bela, eu conheço muito bem essa região... Ali, um
pouco mais ao norte, deixei uma marca, sei abrir uma trilha que nos levará direto
ao acampamento de nossos inimigos... Sei os pontos onde se escondem e onde
costumam armar as armadilhas... Só não sei onde está o cativeiro...
_Acharemos o cativeiro, Diouxie, mas primeiro temos
que passar em um povoado e pousarmos uma noite na casa de um casal... São
ordens da rainha e isso deve ter um por quê... – Disse Kíria, calmamente. Ainda
dava tempo de se embrenharem na floresta antes da noite cair.
_ Infelizmente desse modo perderemos alguns dias no
barco... – Diouxie mostrou-se contrariada, até que deu as costas e voltou a
andar, dizendo: - Siga-me, bela, vamos cortar pela selva... Chegaremos ao rio e
por ele arrumaremos transporte até o tal povoado...
Porém, antes de adentrar na selva, Kíria a deteve.
_Espere, Diouxie... Você vai nos guiar? E vamos
desviar dos inimigos, certo? A ação somente se dará depois de ouvirmos o que o casal
tem a dizer...
_Desviar? Já iremos perder muito tempo no barco e com
o tal casal! E nossos malditos inimigos são guerrilheiros cruéis, que agora
estão roubando crianças! Vamos matando todos que encontrarmos pelo caminho,
bela... – Diouxie olhou para Kíria, incrédula. Tinha sede de sangue! Como poderia
a bela, com tanta coisa em comum com ela, não ter essa mesma sede?
Kíria ficou próxima a ela, empertigada. Não havia
necessidade de tanto derramamento de sangue. Estava tudo seguindo bem demais,
tratando-se dela e de Diouxie. Eram eternas rivais. Odiavam-se com inexplicável
admiração e conseguiam se comunicar por pensamento, sem entender o porquê desta
tamanha ligação.
_Em momento algum concordamos que você seria a
líder, Diouxie! A rainha nos mandou nessa missão para que trabalhássemos
juntas.
_Sim, mas eu conheço melhor nossos inimigos! Já
estive com eles, lembra-se? – Diouxie pousou seus olhos no verde da folhagem
que com eles competia, depois voltou a encarar Kíria, que, muito próxima,
fitava-a o tempo todo. – Minha mãe, a rainha Karina, nos mandou aqui para que o
resgate das crianças seja garantido, bela.
_Está bem, princesa
Diouxie, mas vamos agir conforme nos foi ordenado. Não há necessidade de derramarmos
tanto sangue, se podemos resolver tudo discretamente, como costumamos agir...
_Eu costumo agir matando! E não adianta me chamar de
princesa com ironia. Sabe que não faço uso desse título... Sou apenas uma
guerreira, filha da Deusa!
Kíria cerrou as sobrancelhas, desviando dos olhos
dela. Diouxie não iria ceder e elas não podiam se desentender. Apesar da
parceria ser insustentável por vezes, para o sucesso total da missão seria necessário
um bom entrosamento entre ambas.
_Ninguém disse que não mataremos, Diouxie, mas nos
momentos certos... Agora apenas leve-nos ao grande rio o mais rápido possível...
Precisamos pegar a embarcação antes que a noite caia...
A passos rápidos e adaga em punho, Diouxie foi
rasgando a selva, seguida de perto por Kíria. Apesar de serem das montanhas,
era impressionante a familiaridade que ambas tinham com a floresta.
*
Caía a terceira e última noite naquela embarcação
desconfortável e lotada. Disfarçadas de pessoas comuns, Diouxie e Kíria seguiam
para a missão na grande selva amazônica.
A grande umidade do ar, aliada às altas temperaturas
daquela região próxima à linha equatorial, dava a sensação de estarem sendo
cozidas à vapor, a bordo daquela embarcação que seguia pelo rio de águas
caudalosas e escuras; em suas orlas o gigantesco tapete negro se impunha,
abrigando as mais variadas formas de vida.
Depois que todos se recolheram às suas redes e
esteiras, na parte interna da embarcação, Kíria preferiu ficar na parte externa
admirando o reflexo contagiante da lua nas águas mexidas do rio, que tinha sua
paz rasgada naquela noite. As demais criaturas da Deusa não tinham paz por onde
o homem passava.
_A Deusa está olhando por nós através da lua... – A
voz aveludada de Diouxie vinha, propositalmente, tirar Kíria de seus devaneios.
A princesa guerreira não sabia exatamente no que a bela estava pensando, mas
sabia que a grandiosidade da lua a estava envolvendo.
_Por que não vai dormir, Diouxie? – Kíria pareceu se
irritar. A missão deveria ser muito especial para a rainha mandar logo as duas
juntas. Apesar de serem consideradas as melhores guerreiras de toda a Nação
Amazonas, a rivalidade entre ambas não era segredo para ninguém.
_Muito calor e muita ansiedade... – Diouxie
respondeu, antes de perguntar: - O que sabe sobre esse casal, bela?
_Sei que ele é um pesquisador francês e ela é uma
professora... Ele tem um bom equipamento eletrônico e nos facilitará observar a
floresta via satélite, o que nos ajudará na estratégia de ataque...
_Ah... Por isso não deixou que eu fosse eliminando
os inimigos no caminho... Porque há um plano... – Diouxie fitou o escuro das
águas do rio, mas sua voz não conseguiu esconder o descontentamento. Kíria
sempre sabia mais do que ela, mesmo sendo ela a filha da rainha!
_Não, não há um plano... Não ainda... Você traçará o
plano... – Kíria fitou-a diretamente e, somente depois que ela fez o mesmo,
continuou: - Diouxie, teremos a visão perfeita e conhecemos a floresta... O
pesquisador francês, que nos abrigará em sua casa, nos dará informações
valiosas sobre os inimigos...
_E a mulher dele, a professora, onde entra no caso?
_A professora dá aula na única escola do pequeno
povoado... São os alunos dela que estão sendo sequestrados...
Diouxie desviou os olhos para o céu. Seria um caso
simples de se resolver. Talvez nem precisasse de toda essa ajuda tecnológica e
das informações do tal pesquisador francês. E nem dessa professora, de onde os
alunos sumiriam. Por que faziam tanta questão que ela e Kíria os conhecessem? E
mais, por que a rainha fazia questão que ela e Kíria desempenhassem tal missão,
importante, porém relativamente simples? Voltou a fitar Kíria. Por uma fração de
segundo, quase se deixou atordoar pela beleza dela, no entanto foi mais forte
e, anunciando que iria dormir, deu-lhe as costas.
Kíria ficou novamente só, olhando Diouxie se afastar,
a brisa quente agitando os cabelos vermelhos. Não podia olhar muito para ela
sem que sentisse algo revirar-se dentro de si. Era estranho. Não sabia se era
bom... Ou se era péssimo. Buscou as estrelas e procurou por lembranças do
grande amor de sua vida, aquela por quem jurara amor eterno. Como as lembranças
vieram fracas, elevou seu pensamento à Deusa, solicitando proteção à batalha
que se seguiria.
*
Já amanhecia quando o barco aportou em um píer
improvisado, em uma pequena área devastada que levava ao povoado. Kíria e
Diouxie foram as primeiras a descer, sob os olhares curiosos das demais
pessoas, que ainda desarmavam suas redes e ajuntavam suas bagagens.
_Finalmente! – Diouxie exclamou, demonstrando
insatisfação. – Eu já estava enjoada de perder tanto tempo nessa porcaria de
barco, em meio àquelas pessoas asquerosas.
Ignorando as reclamações de Diouxie, Kíria procurava
pelo casal que deveria vir recebê-las. Das poucas pessoas que estavam ali,
ninguém parecia ser quem procuravam, pois todos eram muito parecidos fisicamente.
_Veja, bela... – Diouxie apontou discretamente para
uma mulher alta que caminhava na direção delas, o rosto escondido sob um enorme
chapéu de palha.
_Sim... Ela destoa dos demais... – Kíria concordou,
mas apenas pela altura da mulher, pois ela se vestia de modo muito simples,
como os habitantes locais.
Esperaram a mulher se aproximar, parar diante delas
e ficaram surpresas quando ela levantou o rosto. Os traços eram marcantes e, na
pele branca, olhos negros enviesados se destacavam. Enquanto esperavam por
alguma atitude dela, trocaram rápido, mas significativo, olhar. Icamiaba?
_Vocês são as mercenárias enviadas para nos ajudar
no rapto de nossas crianças?
_Sim... – Diouxie respondeu. Estava combinado que passariam
por mercenárias, para não levantarem suspeitas sobre suas condições de
guerreiras amazonas.
_Meu nome é Imee... Eu sou a professora do
povoado... Venham comigo...
Seguiram a estranha professora em silêncio até a
casa onde ela morava com o marido, que não se encontrava.
_A casa é simples, mas tem um quarto só para
vocês... – Assim que entraram em uma pequena sala, que continha um sofá
modesto, uma mesa básica com quatro cadeiras e o que destoava da simplicidade em
um canto da sala: uma grande tela fina e plana, um conjunto de computadores,
laptops, rádios e demais aparelhos eletrônicos, que deixavam fios esparramados
pelo ambiente, desde o chão, pelas paredes até o telhado, por onde saiam, para
se acoplarem a uma enorme antena parabólica que havia acima da casa.
Diouxie lançou um olhar para Kíria. Então aquele era
o equipamento que as ajudaria! Como se amazonas precisassem disso! Percebeu que
Kíria concordava com ela, mas o jeito ‘politicamente correto’ da bela não lhe
permitia assumir isso. Viu que ela tinha os cabelos grudados no rosto, de onde
brotavam bolinhas de suor, mas nada disso tirava sua beleza. Rapidamente tratou
de desviar o olhar para a professora, que lhes apontava um quarto, onde havia
apenas duas camas e uma pequena cômoda de três gavetas, com uma moringa e dois
copos em cima. Do teto vinha um fio trazendo uma lâmpada.
_Fiquem à vontade... O banheiro é ali... - Apontou
para um canto da casa e concluiu: - Imagino que queiram tomar um banho e
descansar... Vou preparar algo para vocês comerem...
Uma vez que Kíria aparentava estar mais cansada,
entrou primeiro no banheiro para tomar uma boa ducha. A água, de onde quer que viesse,
era sempre bem vinda, pois além de proporcionar prazer, levava tudo de ruim
embora. Tantas pessoas comuns, tantos homens muito próximos a ela davam-lhe
mal-estar. E Diouxie muito perto... E às vezes muito longe. Longe porque ela
própria se distanciava.
Fechou os olhos e deixou a água correr. Novamente se
encontrava pensando em Diouxie. Estava, mais do que incomodada, ficando
temerosa. Nunca permitira que a ruiva lhe exercesse aquele fascínio que exercia
nas demais, até porque nunca a vira como superior. Na verdade, nunca sentira
que alguém lhe fosse superior. No entanto, sabia que Diouxie sentia a mesma
superioridade. Só que Diouxie era diferente dela. Diouxie era má e usava de
qualquer arma que fosse preciso. Diouxie era implacável e não sabia o que era
perder. E era cruel e traiçoeira... Mas o pior era que Diouxie era atraente e
envolvente.
Aproveitando a curta ausência de Kíria, Diouxie foi
atrás de Imee na cozinha, onde mais alguns aparelhos eletrônicos se destacavam.
Contudo, entre as tantas coisas que vinham intrigando a guerreira, a mais forte
era a aparência da professora. Ela tinha todas as características físicas das
Icamiabas, as guerreiras amazonas das florestas.
_Imee! – Chamou-a. – De onde você é? – Perguntou de
repente, obrigando-a a se virar e se deparar com o verde selvagem do olhar de
Diouxie, que contrastava com as vestes negras, pesadas demais para o clima da
região.
Imee ergueu o rosto e cravou nela seus olhos
enviesados por alguns segundos, depois voltou a olhar para frente, sem nada
dizer.
_Você não é quem finge ser... – Diouxie usou uma
língua que somente as amazonas conheciam, entre elas as Icamiabas.
Imee continuou parada, como quem pensa no que vai falar,
mas o que saiu já parecia uma resposta pronta:
_Sou descendente de filipinos... – Ignorou o que
Diouxie falou na outra língua e começou a pegar alguns mantimentos. – Mas moramos
aqui porque Antoine, meu marido, faz pesquisas botânicas na floresta... E
também porque concordamos em criar nossos filhos em meio à natureza...
_Filhos? Quantos têm?
_Um menino e uma menina... – Imee andava de um lado
ao outro, evitando o olhar de Diouxie, que sentia estar fixo nela. Sentiu-se
exalando adrenalina e temeu por isso. A mulher que a inquiria a assustava.
_Onde eles estão?
_Estão brincando, aqui por perto...
_Crianças estão sendo sequestradas e você deixa seus
filhos brincando por aí?
_Maria está com elas... E com outras crianças, que
aproveitam para brincar quando não têm aula... Ou trabalho... – Essa última
palavra saiu com leve destaque a mais, como se quisesse desviar o rumo da
conversa.
_Quem é Maria?
_Minha ajudante... Aqui em casa e na escola...
_Tire o chapéu... – O pedido de Diouxie soava como
uma ordem. Seduzia e amedrontava.
Porém Imee resolveu aceitar o desafio e, tirando o
chapéu, fixou seus enviesados olhos negros nos grandes olhos verdes da mulher
que lhe inquiria.
Levemente indignada ao sentir um desafio, Diouxie
foi até ela e, muito próxima, sussurrou:
_ Icamiaba!
Mas antes que a professora pudesse esboçar qualquer
reação, uma pergunta veio interromper o estranho diálogo.
_Posso saber sobre o que conversam? – A voz rouca
vinha de Kíria, que aparecia na cozinha.
Sentindo o coração dar uma acelerada, Diouxie virou-se
para ela. Não sabia se odiava mais a sensação que isso lhe causava ou a
relutância de ambas em ceder. Viu Kíria com os cabelos molhados, trajando uma
roupa leve; e os olhos cinzas, cravados nela, disfarçando certa indignação. No
peito arfante, as mechas de cabelo subiam e desciam, acompanhando a respiração
dela e deixando escorrer água a ponto de lhe molhar a blusa e revelar o
contorno dos seios. Estavam visíveis os mamilos, arrepiados, provocantes... Não
soube por quanto tempo ficou ali, admirando e odiando Kíria.
Aproveitando-se da situação, Imee deu as costas e
começou a descascar alguns tubérculos, antes de colocar água para ferver.
_Tem algo a me dizer, Diouxie? – Somente após
intermináveis segundos sustentando o olhar perturbador de Diouxie, Kíria
conseguiu indagar, já certa da resposta positiva.
No entanto Diouxie nada disse, apenas passou por ela
respirando fundo, sentindo-se inebriar com o aroma delicioso que ela exalava. Estaria a bela com ciúmes? Na sequência
pareceu bufar. Estava encantada por Kíria e precisava sufocar isso.
Um pouco sem graça, Kíria cruzou os braços, foi até
a porta de entrada e encostou-se ao batente para observar o cotidiano do lugar.
Foi quando viu um homem alto trazendo duas crianças, um menino e uma menina,
cada uma sendo conduzida por uma de suas mãos. O homem, que tinha cabelos
castanhos aparecendo por sob um boné azul escuro e usava óculos de sol,
rapidamente se aproximou.
_Olá! – Ele abriu um largo sorriso e exibiu dentes
claros e alinhados. – Não me diga que você é uma das mercenárias?
Kíria endireitou-se. Olhou bem para ele e para as
duas crianças antes de responder positivamente. Enfim, poderiam conversar sobre
os planos de ação para agirem o mais rápido possível e voltarem às montanhas.
*
Enquanto arrumava a cama onde iria dormir, Diouxie
deixou escapar um estalo dos lábios, claro sinal de insatisfação. Para ela,
fora um dia perdido. Muitas comidas e conversas que a nada levariam. Deixaram a
reunião acontecer somente ao cair da noite, o que só lhe fizera aumentar a
ansiedade. Ela e Kíria pouco falaram, apenas ouviram aquele homem falar e
exibir seus equipamentos eletrônicos. E a mulher, então! Virou-se para fitar
Kíria, que já estava deitada na outra cama, encostada na parede oposta à sua.
_O que foi, Diouxie? Tem algo a me dizer, além de não
ter gostado da reunião de estratégia?
_Tenho, bela... – Sentou-se na cama e encarou-a,
deixando uma mecha dos cabelos vermelhos cair sobre o rosto, cobrindo parcialmente
um dos seus olhos.
_Diga... – Kíria também se sentou, para fitá-la de
frente.
_A professora Imee é uma icamiaba...
_Sim... Ela tem os traços e a estrutura física das
icamiabas... – Kíria concordou, para surpresa de Diouxie. – Isso explicaria o
porquê de nossa presença... Ao optar por viver com um homem, perdeu seus
direitos nas aldeias da floresta e preferiu pedir ajuda pra nós, amazonas das
montanhas...
_Só que ela não assume! Diz que é filipina...
_Estranho... Por que ela mentiria?
_Não sei... Mas amanhã vou passar o dia com ela, na
escola... O marido dela achou que devo ficar lá, apenas observando para descobrir de onde vem o inimigo... – Diouxie
soltou um sorriso sarcástico, depois ficou séria e completou: - Só que vou
descobrir mais... E ainda vou arrancar toda a verdade dela!
_Vai seduzi-la, Diouxie? – Kíria tentou ironizar,
mas seu tom soou com indignação e viu, pelo sorriso no canto dos lábios de
Diouxie, que ela percebeu isso.
_Está com ciúmes, bela? – A voz aveludada veio com
alguma satisfação.
_Não seja tola! – Desviou o olhar, voltando a se
deitar, pensativa. O pior era que Diouxie tinha razão.
_Bela, preste atenção: eu não confio nesse homem. Você
vai se embrenhar com ele na floresta amanhã, apenas para observar... Isso é ridículo!
_Sim, tão ridículo quanto você acompanhar a
professora filipina... Mas há algo mais grave nisso tudo... Por isso eu e você
fomos escaladas, Diouxie... Precisamos de muita sagacidade... Agora vamos
dormir... Apague essa horrível luz artificial...
Sem dizer mais nada, Diouxie se levantou a apagou a
luz. Voltou para cama na escuridão total. O barulho da floresta deveria
conduzi-la ao sono, mas a respiração de Kíria se fazia presente. Estirada na
cama, voltada para cima, Diouxie virou a cabeça para onde a bela dormia. Sentia
algo forte. E sentia que ela também sentia!
_Kíria...
_Sim, Diouxie... – A voz de Kíria saiu como um
sussurro, podendo facilmente ser interpretada como ofegante.
_Nós... Eu e você... – Diouxie, enfim, falou.
_Não, Diouxie, não...
_Por quê? Eu sinto sua vibração... Sinto que você me
deseja!– Diouxie respirou fundo e controlou a respiração para completar: - E eu
vou até aí...
_Não faça isso, Diouxie! Não ouse! – Kíria sentou-se
na cama e estendeu a mão espalmada para frente, como se pudesse impedi-la
naquela escuridão. Parecia lutar o tempo todo contra si mesma e isso estava
ficando cada vez mais complicado. Fechou os olhos e alcançou a Deusa, pedindo a
imagem de seu grande amor, que deixara na aldeia para cumprir essa missão ao
lado de Diouxie.
_Isso está ficando forte, bela... – Diouxie não
levantou, mas também ficou sentada na cama, olhando na direção dela,
imaginando-a como se pudesse vê-la.
_Diouxie... – Agora foi Kíria quem precisou acalmar
a respiração. Escolheu as palavras e pronunciou: - Eu vivo com uma guerreira a
quem jurei amor eterno. Você sabe disso! Nada haverá entre nós...
_Nunca? – Diouxie esperou, mas por um tempo não
houve resposta. Ficou ouvindo os sons da floresta, bem como a respiração de
Kíria, que aos poucos ia ficando inaudível. Estava quase adormecendo quando a
ouviu sussurrar: ‘nunca’.
*
Após alguns minutos assistindo Imee dar aula aos
pequeninos, Diouxie foi vasculhar os arredores da humilde escola. Só de olhar,
conseguiu identificar vários pontos de observação, bem como algumas rotas de
fuga. Mas uma guerreira astuta como Diouxie atinaria na hora: apenas uma trilha
era verdadeira, as demais eram para despistar. Como percebeu Diouxie, a mais
utilizada estava bem escondida e não havia dúvida que ela levaria ao cativeiro.
Como já esperava, naquele dia não havia ninguém nos pontos de observação. Fator
suspeito, este.
Já tendo conseguido descobrir o que queria, Diouxie
voltou para a escola, a fim de esperar a aula acabar e ver como os alunos iam
embora. Pela onda de sequestro que ocorria, as mães estavam todas vindo buscar
suas crias, temerosas. Aquele era um lugar com pouca concentração de
habitantes; um lugar precário, esquecido, onde as pessoas apenas se ajuntaram
por qualquer conveniência. A casa de Antoine e Aime e a escola eram as únicas construções
de tijolo, sendo as mais comuns palafitas de madeira e algumas taperas de barro
e palha.
Para os raptores, parecia que era tudo muito
simples: observavam as crianças, escolhiam e depois iam até suas casas para, em
algum momento de distração, levá-las selva adentro. Mas Diouxie ergueu uma
sobrancelha e apertou os lábios, em um sorriso interno. Por pouco tempo.
_Imee... – Diouxie entrou na escola quando apenas
restaram a professora e seus dois filhos. Pretendia questioná-la novamente, mas
como as duas crianças estavam lá e não podiam brincar sozinhas lá fora, optou
por irem todos para a casa deles. – Vamos embora, eu já vi o que tinha que ver
aqui...
Enquanto caminhava, Diouxie fixou o pensamento em
Kíria e sentiu um aperto no peito. Seria um presságio? Diouxie ficou estática e
respirou fundo. Teve uma leve sensação de que a vida de Kíria poderia estar em
perigo.
_Diouxie? Está tudo bem? – Imee, soltando as mãos
das crianças, que correram em direção à casa, parou para analisar Diouxie e viu
que ela demonstrava algo errado.
_Sim... – Diouxie chacoalhou levemente a cabeça e
fixou os olhos em Imee: - Vai me contar a verdade. E vai ser agora.
A professora engoliu em seco. Diouxie era a
guerreira amazona mais temida em toda a Nação. Tinha a fama de ser cruel, mas o
que Imee não sabia era que ela seria tão astuta. Não podia mais esconder.
_Você está certa, princesa Diouxie. Sou uma
guerreira amazona. Sou icamiaba. Ou era...
Entraram em silêncio e, somente depois que Imee deu
comida para as crianças e estas foram estudar na sala, puderam conversar
tranquilamente.
_Então, icamiaba Imee, conte-me tudo... – Diouxie
desencostou-se da cadeira que estava sentada e debruçou-se na mesa da cozinha,
onde estavam frente a frente.
_Deixei minha aldeia na selva porque me apaixonei
por Antoine e engravidei...
_Não quero saber de sua vida pessoal... Quero saber por
que escondeu isso de nós, por que tivemos que passar aqui e perdermos tanto
tempo com as estratégias fracas e os equipamentos inúteis de seu marido, sendo
que temos nosso próprio modus operandi...
_Meu
marido está inconformado com o sequestro das crianças daqui... Ele ficou mais
inconformado ainda quando percebeu o medo que as autoridades têm desses
sequestradores, que são guerrilheiros, já inimigos conhecidos de nós,
guerreiras...
Diouxie resolveu não falar nada apenas para analisá-la.
Queria ver até aonde ela iria com essa condição de guerreira e ao mesmo tempo
de esposa submissa. Isso era incompatível!
_Ele ficou desesperado sem ajuda! E com medo que
nossos filhos fossem levados! Mas claro que eu não deixaria isso acontecer,
pois sou uma guerreira... Só que não sou bem vista na minha aldeia por ter
arrumado um marido... Não sou mais icamiaba e, o pior de tudo, não sou mais
amazona... Mas sou e sempre serei guerreira, mesmo vivendo ao lado de um homem.
_E se escondendo à sombra dele?
_Não me escondo à sombra dele! Apenas vivo com ele
porque o amo! Mas escondo o fato de ser guerreira...
Diouxie olhou pela porta afora, avistando a floresta
que começava logo ali. Ou melhor, onde eles estavam pertencia à floresta, que
por eles fora recuada. Estava ficando entediada com a conversa dela e resolveu
intervir:
_Seja mais direta! – Ordenou, depois de voltar a
encará-la de frente.
_Está bem... Chamei uma amiga icamiaba, que é bem
relacionada em toda a Nação, e pedi ajuda. Ela mandou alguém até às montanhas
e, pela gravidade da situação, mandaram as duas melhores guerreiras...
_E o que mais eu não sei?
_As crianças raptadas são levadas a um acampamento
na selva, onde ficam prisioneiras... Depois são levadas para muito longe... Os
meninos são treinados para se tornarem guerrilheiros... E as meninas viram
escravas sexuais...
_Isso é horrível! – Diouxie cerrou o punho e quase
esmurrou a mesa. Levantou-se, foi até a porta e depois voltou a ficar diante
dela, os olhos parecendo querer fulminá-la. – E nós estamos perdendo todo esse
tempo por quê?
_Para que Antoine passe todos os detalhes! Ele já
andou investigando tudo!
_Sabe muito bem que eu e Kíria faríamos isso tudo
melhor e mais rápido!
_Mas Antoine precisaria passar o que
sabe! – Havia desespero na voz de Aimee. - Ele precisa saber quem o está ajudando!
Ele parou suas pesquisas para se dedicar a combater esses malditos guerrilheiros
ladrões de crianças! Ele precisa dessa vitória... E somente eu sei que sem a
nossa ajuda, isso seria impossível...
Diouxie sentiu o sangue lhe subir para a cabeça.
Sentiu suas faces arderem e sua respiração ampla pareceu exalar vapor. Sentiu
aquela repugnância que só poderia cessar com sangue derramado. Automaticamente
pegou sua adaga da bota e segurou-a, porém com a ponta voltada para o chão.
Esperou Imee se levantar e deu chance a ela de fazer o mesmo.
Muito assustada e apertando sua adaga, Imee tentava
segurar o olhar de Diouxie, mas o que via naqueles olhos verdes não era nada
bom. Ela queria seu sangue. Precisava se manter firme para morrer com honra e
preparou-se para reagir.
_Professora? As crianças... – Era a voz de Maria,
que aparecia para quebrar o clima de guerra entre elas. Aproveitando-se disso
para sair da situação, Imee virou-se e viu Maria e seus dois filhos parados
diante delas, os pequenos olhos rasgados estavam bastante abertos, assustados.
Tentou dar as costas a Diouxie, mas ela a segurou fortemente pelo braço.
_Estamos perdendo todo esse tempo apenas para que
seu marido vire herói? Ou ele é o bandido? – Diouxie sussurrou, mas sua vontade
era de urrar. Apertou ainda mais o braço dela.
_Por favor, Diouxie... – A professora implorou.
_Só quero uma coisa, Imee. Cuide dos seus filhos e
proteja as demais crianças daqui. Apenas por elas você ficará viva! - Revoltada
por não poder matá-la, largou o braço dela e saiu, cortando o minúsculo
povoado, ignorando os olhares dos habitantes dali. Passou pela escola e,
através da trilha que julgara ser a principal, embrenhou-se na selva. Precisava
encontrar Kíria.
*
Parados a uma distância segura, no meio da mata,
Kíria e Antoine observavam o acampamento. Os guerrilheiros acendiam uma
fogueira diante de uma única cabana, armada com troncos e folhagens nativas.
_Ali dentro estão as crianças... – Antoine disse, em
sussurro. – Eles as deixam amarradas lá dentro... Como aqui é relativamente
perto do rio e do povoado, eles as transferem para outro ponto muito mais
distante, onde elas se transformam em prisioneiras para sempre, entende?
_Sim, claro... – Kíria já fizera todas as suas
constatações. A ação ali seria simples. Eram quatro homens ao lado de fora e um
lá dentro. Ela e Diouxie já sabiam como eles costumavam agir e ainda poderiam
contar com o fator surpresa. Tudo o que tinha a fazer agora era voltar,
armar-se ao máximo e combinar a ação com Diouxie.
_Vamos voltar... – Antoine foi à frente, fazendo um
caminho diferente do qual vieram. Com um facão, abria nova trilha e ia a passos
rápidos, como a provar para Kíria que era profundo conhecedor da região.
Gostava de saber que uma mulher fascinante como aquela seguia atrás dele, em
meio a toda aquela floresta fechada.
De repente, ao se encontrarem em uma pequena
clareira, Antoine parou. Olhou para o céu, olhou ao redor, limpou o suor e
virou-se para Kíria. Parou no olhar dela. Pareceu ficar atordoado e sorriu,
para disfarçar.
_Como uma mulher tão linda como você pode ter se
tornado uma mercenária? Eu achei que isso não existisse, exceto nos filmes...
Kíria ignorou o comentário e fez sinal para que
continuassem. Não poderiam perder mais tempo algum, ou aquelas crianças que
estavam presas naquela cabana seriam transferidas e aí não conseguiriam mais
resgatá-las, a não ser em uma complexa missão contra toda a organização
criminosa, o que envolveria muitas guerreiras e grandes estratégias.
No entanto, ele ficou parado e, quando ela tentou
passar por ele, segurou-a.
_Espere, Kíria...
Em um golpe brusco, Kíria puxou o braço e
desvencilhou-se dele, parando de frente para fita-lo, em posição de defesa, já pronta
para pegar a adaga. Sentia quando um homem queria atacar. Ele exalava aquele
odor característico, que ela já conhecera.
_Não ouse...
_Calma, Kíria... Ou bela... Não é assim que sua
amiga te chama? – Antoine recuou um pouco, mas manteve o braço que segurava o
facão erguido. Em seu rosto, um sorriso malicioso surgia.
Em um gesto incrivelmente rápido, Kíria sacou sua
adaga da bota e chutou a mão dele, mandando o facão para longe. Estirou
totalmente o braço e apontou a lâmina no nariz dele. Seu olhar ficou ameaçador,
mas isso pareceu deixá-lo ainda mais fascinado. Sem esboçar reação, ele
assobiou. Kíria sentiu um homem se aproximar por trás, mas com natural
agilidade, virou-se e conseguiu golpeá-lo fatalmente. Voltou-se para Antoine,
agora com a adaga suja de sangue.
_Uma morte. Quantas mais, seu covarde?
Nesse momento, dois homens apareceram do mato, cada
um por um lado, e começaram a ataca-la com cabos de espingarda. A bela desviou
de um, esfaqueou outro, mas não conseguiu se defender de um terceiro, que
surgiu por trás. Sentiu uma dor aguda no lado esquerdo da cabeça e cambaleou.
Equilibrou-se o mais que pode nas pernas. Um líquido quente escorreu por seu
rosto e ele soube que ia cair. A última coisa que viu foi a imagem de Antoine
sorrindo... Por trás, gigantescas árvores se agitavam.
*
Já bem aprofundada na floresta, Diouxie parou para
ouvir qualquer coisa que pudesse ser um sinal. Seguia por onde havia vestígios
de pessoas. Buscava no ar o cheiro de Kíria, pois naquele momento sentia
nitidamente que ela estava em perigo. Fechou os olhos um instante e sentiu ser
guiada para o norte.
Adaga em punho, voltou a andar pela selva. Seu
coração batia em disparada e ela ansiava muito encontrar alguém em seu caminho.
Seu desejo era tão forte que pareceu ser atendido. Ao ouvir um barulho,
escondeu-se e prendeu a respiração. Alguém se aproximava e era um guerrilheiro.
Esperou-o passar e depois se jogou nele, agarrando-o por trás, de modo que a
lâmina de sua adaga ficasse no pescoço dele. Socou-o com força nos rins, antes
de ordenar:
_Leve-me ao cativeiro das crianças.
O homem tentou reagir, mas Diouxie levantou o joelho
e atingiu-o na virilha por trás, arrancando dele um grunhido. Apertou a faca no
pescoço dele e esfregou o suficiente para algum sangue começar a escorrer.
_Vamos! – Diouxie gritou. – Ou prefere ser abatido
aqui?
Sem conseguir responder, o homem soltou um dos braços
que agarrava o braço dela na tentativa inútil de se desafogar, e apontou na
direção que deviam seguir.
Muito apressada, Diouxie foi seguindo, com o homem
em agonia sempre na sua frente, como um escudo. Até o momento em que ele parou
e ela afrouxou o braço. Viu que ele tinha algo a dizer e jogou-o no chão. Com a
adaga apontada para ele, inquiriu:
_Estamos próximos do local, certo?
_Sim... – ele resfolegou e tossiu, contorcendo-se em
uma careta.
_Quantos homens estão lá?
_Dois...
Diouxie sorriu sedutoramente, depois ficou muito
séria e, cerrando as sobrancelhas, desferiu um violento chute no rosto do
homem, fazendo-o cair por inteiro no chão, no meio do mato.
_Acha que sou idiota? Quantos homens estão lá?
Já trêmulo e cuspindo os dentes com sangue e saliva,
ele resolveu colaborar. Sabia que sua vida estava nas mãos daquela criatura
que, vestida de preto e com os cabelos da cor de fogo, parecia uma criação
satânica, uma bela e sedutora mulher.
_Quatro homens de hoje até amanhã... – A voz dele
estava ofegante, os olhos arregalados. Ele estava apavorado e faria qualquer
coisa para ser poupado. - Eles vigiam pelo lado de fora... Um em cada ponta...
Norte, sul, leste e oeste, segundo a nossa localização... Um homem deve estar
dentro do acampamento, com as crianças...
_Quantas crianças?
_Umas cinco ou seis...
_E o chefe de vocês? O líder, onde está?
_Deve ter voltado para casa dele... – O homem tentou
se levantar, mas Diouxie empurrou-o violentamente com o pé, fazendo com que ele
se estirasse novamente no chão.
_Quem é o líder?
_Antoine...
Diouxie congelou, esquecendo-se por instantes do
homem caído e ferido à sua frente. Kíria estava com Antoine. Então a sensação
que sentira era um aviso mesmo. Caíram em uma armadilha. E Kíria estava em
perigo.
Revoltada, pegou sua adaga e degolou o guerrilheiro,
acabando de vez com o sofrimento dele. Seguiu muito rapidamente na direção que
lhe fora indicada, certa de que pegaria um por um e libertaria as crianças.
E assim o fez.
*
Atordoada e sentindo muita dor na cabeça, Kíria foi
voltando a si e abriu os olhos. Viu árvores gigantescas ao seu redor e sentiu
as mãos atadas acima da cabeça, presas em um tronco. Seu corpo estava estirado
no chão e ela fez força para tentar se soltar e levantar.
_Guarde suas forças, Kíria. Primeiro vamos
conversar... Depois vamos namorar bem gostoso... – Antoine soltou uma gargalhada
e esfregou as mãos. Ficou em pé sobre ela, com uma perna de cada lado e
abaixou-se, sentando no quadril dela. – É tão linda, Kíria... Fiquei encantado...
Não gostaria de ter que matá-la... Mas tenho uma proposta: diga-me de onde
vocês vêm, para quem trabalham...
_E se eu não disser... – Kíria jamais diria algo,
mas precisava ganhar tempo. Sabia, ou melhor, sentia que Diouxie estava em seu
encalço e logo a acharia. Precisava apenas se manter viva.
_Vou te matar e atribuir a culpa aos guerrilheiros,
que trabalham para mim... – soltou nova gargalhada, tão alta que um homem
apareceu e ficou observando a tortura que estava por acontecer.
_Solte-me... – Kíria pediu, mas o que ganhou foi um
tapa violento no lado direito do rosto. Sentiu gosto de sangue na boca e olhou
para ele com tanto ódio que ele lhe desferiu outro tapa, agora na outra face
dela.
_Quer que a solte? – Antoine, agindo como se nada
tivesse feito, pegou uma faca e cortou as amarras que a prendiam. Saiu de cima
dela e esperou-a levantar.
Kíria estava muito ferida e atordoada. Apesar de
conseguir se levantar, não conseguia focar a visão direito. Antes de se
endireitar totalmente, foi golpeada mais algumas vezes no abdome, porém segurou
o impacto sem cair. Nesse momento fez-se o silêncio e ela pode ouvir, bem como
sentir, a aproximação de Diouxie. Viu que seu algoz armava outro golpe, porém,
munida de alguma força, conseguiu desviar e puxá-lo pelo braço. Jogou-o longe,
no instante imediato em que Diouxie abatia aquele guerrilheiro que se divertia
com o sofrimento dela.
Antoine levantou e, ao se deparar com as duas
mulheres à sua frente, sacou sua arma para atirar, entretanto, esquecendo-se
que estava machucada e sentindo-se animada com a presença de Diouxie, Kíria
saltou sobre ele, desarmando-o. Ainda esmurrou-o até que ele caísse.
_Acabou, Antoine. Você perdeu. Matei todos os seus
homens e soltei as crianças. – Diouxie proclamou, orgulhosa, diante do homem
caído. - Agora vamos voltar ao povoado e você vai assumir seus crimes diante de
sua esposa e de toda a população...
_Nunca! – Ele disse, desafiador. Ainda dava para
sentir seu sentimento de superioridade. – Prefiro morrer!
_Como queira... – Diouxie, então, foi até ele e
simplesmente enfiou-lhe a adaga na barriga, rasgando-a para cima e para baixo. Tirou
a arma suja de sangue em uma fração de segundos e ficou observando enquanto ele
morria. Parecia sentir prazer com isso.
_Você o matou... – Kíria estava aliviada, apesar de
não apreciar essa matança. Era assim que Diouxie resolvia as coisas. Olhou-a
longamente, sem saber o que sentia. Seria gratidão ou adoração?
_Missão cumprida... Vamos embora... – Diouxie foi
até Kíria e olhou melhor: - Está ferida... Mas vou cuidar de você... – Apoiou-a
em seus ombros e começaram a andar...
_Diouxie, o povoado é do outro lado...
_Esqueça o povoado, bela... Acabou a missão e a volta
será do meu jeito... Vamos pela selva, até a aldeia da rainha Zininsk...
_Mas e quanto à professora Imee? E as crianças?
_A professora Imee é uma icamiaba. Ela vai saber
viver sem o marido e cuidar de seus filhos e das demais crianças, com a ajuda
de Maria... O povoado terá paz por um tempo, sem Antoine e seus
guerrilheiros... Claro que há outros por aí... A organização deles é muito
complexa, mas um apêndice acabou de ser destruído...
_Inacreditável... – Kíria murmurou. Depois sentiu
algumas dores começarem a aparecer e curvou o corpo, levando uma mão na
costela. Apoiou-se nela, pronta para seguir. Diouxie salvara sua vida.
* *
*
Após sentir um toque aveludado em sua perna, Kíria abriu
os olhos, calmamente. Sentia-se bem melhor, mas de sua testa brotavam gotas de
suor. Deparou-se com Diouxie, junto com ela na tina, também abrindo os grandes
olhos verdes, que prontamente se fixaram nela. Certamente a princesa estivera
ali com ela por algum tempo, também relaxando. A pequena batalha, afinal, não
fora assim tão difícil. Empertigou-se e desviou os olhos da ruiva,
levantando-se para deixar a tina, onde a água parecia ferver. Apesar de estar
nua, sentir-se observada por Diouxie não lhe incomodou, mas, de repente, sentiu
uma ligeira vertigem. Imediatamente Diouxie levantou-se também, pronta para
ampará-la.
_Está precisando de cuidados, bela... Eu vou
ajuda-la...
_Não acha que já fez demais por mim, Diouxie? – Tentando
ignorar o corpo voluptuoso dela, a bela conseguiu sair da tina e enrolar-se em
uma toalha, antes de se jogar em um tatame que havia ali ao lado.
_Fomos mandadas juntas para essa missão não apenas
para a certeza de uma missão bem sucedida, mas também para que nos
entendêssemos de vez e... – Diouxie fez uma pausa e completou, fitando-a
duramente: - principalmente para que cuidássemos uma da outra.
Sem mais argumentos, Kíria calou-se. Faria o mesmo
por ela e não queria discutir. Sentia-se cansada.
Diouxie saiu da tina, secou-se, colocou uma peça de
roupa confortável e foi até ela, depois de pegar os frascos que a curandeira
lhe dera.
_Agora, relaxe, bela... Feche os olhos que vou
cuidar de seus ferimentos... – Com um
chumaço de fibras de alguma planta nativa embebida em uma infusão de folhas,
Diouxie passou nos ferimentos do rosto e dos braços de Kíria. Depois, pediu que
ela abrisse a toalha a fim de lhe esfregar um unguento.
_Não há necessidade... – Kíria protestou,
encabulada. Diouxie estava excessivamente cuidadosa e isso estava incomodando.
_Aquele cretino socou você, Kíria. Isso vai ajudar você
a respirar melhor e dormir... Não esqueça que temos que voltar às montanhas...
– Ignorando o fraco protesto de Kíria, Diouxie abriu a toalha que envolvia o
corpo dela e, fingindo não notar os seios que saltavam diante de seus olhos,
esfregou o ungento na região torácica.
Sentindo que precisava ser cuidada, Kíria fechou os
olhos e tombou a cabeça para trás, relaxando. Sentia o toque das mãos de
Diouxie lhe massageando próximo ao coração. Depois, as mãos contornaram seus
seios e massagearam suas costelas e sua região abdominal. Era incrível como
aquelas mãos assassinas sabiam proporcionar alívio à dor que ainda sentia.
Diouxie tinha razão, elas tinham uma ligação.
_Sim, temos... – Murmurou Diouxie, fitando-a
enquanto a massageava, exercitando o autocontrole para não envolver os seios
dela em suas mãos.
_O que disse? – Kíria sentiu que as mãos dela
queriam se atrever a algo mais.
_Disse que amo você... – Sem dar chance de defesa,
Diouxie beijou lentamente os lábios de Kíria. Inebriou-se por instantes,
sentindo-a naquele beijo, deixando-a sem ação e roubando suas possíveis
palavras de protesto.
Abruptamente, a ruiva parou e deu as costas à bela,
que agora abria seus olhos cinzas e procurava por ela. Foi preparar um líquido
em uma cumbuca e voltou.
_Beba isso e durma... Eu estarei no tatame ao lado. Você
vai acordar boa... – Esperou-a tomar todo o líquido viscoso e, depois que a viu
contorcer o rosto em uma careta, sorriu levemente, pegando a cumbuca vazia e
depositando-a em um tronco de árvore serrado ao meio, usado como mesa. Também
cansada, deitou-se e voltou a olhar para Kíria. Mesmo machucada e cansada,
Kíria era uma beldade, porém jamais seria sua por inteiro. Então, não seria
nada. Nunca. Fechou os olhos e virou para o lado oposto. Estendeu a mão para
sua adaga, que estava sempre muito próxima, e agarrou o objeto com tamanha
ternura que chegou a envolvê-lo. Era assim que se sentia segura. Tratou de
tentar dormir.
Entorpecida, Kíria sentia seu corpo muito leve. Não
sabia mais onde estava. “Você está aqui
comigo...”. Ouviu a voz de Diouxie responder sua pergunta. Nunca entendia
porque isso acontecia, mas o fato era que acontecia. Diouxie... Chamou, em pensamento. No mesmo instante as mãos dela
voltaram a acariciar seu peito, mas dessa vez todo o corpo dela estava sobre o
seu. Sentiu seios quentes tocando os seus. Tentou estender as mãos para
tocá-la, mas não conseguiu. Tampouco conseguiu envolvê-la, porém sentia lábios
macios tocando sua pele. Viu-se enroscada em uma perigosa teia, onde dois
enormes olhos verdes apareceram, cravados em um rosto de traços marcantes e
emoldurado por cabelos vermelhos. Destemida que era, enfrentou aqueles olhos e,
quando, propositalmente, deixou-se levar, sentiu-se arder em paixão. Apesar de
prazerosa, sabia que a sensação era proibida. Precisava agarrar Diouxie e tocá-la.
Não! Precisava era tirá-la de cima de
seu corpo. Precisava deter aquele ataque sensual! Agora as mãos de Diouxie lhe percorriam
por inteira. E ela sentia paixão...
_Pare! – Kíria sentou-se na cama, o corpo todo
molhado. Olhou para o lado e, na penumbra, conseguiu ver Diouxie sentada no
outro tatame, fitando-a paralisada. Engoliu em seco, respirou fundo e, tentando
acalmar as batidas do seu coração, perguntou à ruiva: - O que houve, Diouxie? O
que acabou de acontecer?
Em pensamento, Diouxie enviou um “você sabe”, mas após algum tempo apenas
respondeu:
_Você estava sonhando, bela... – Diouxie voltou a
deitar. E jamais passaria de um sonho.
FIM
Comentários